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Blog do Mauro Beting

Cem anos de uma amizade de Dérbi

Mauro Beting

22/02/2017 12h46

 

 

 

Roberto, Ademir. Por MILTON TRAJANO

 

 

 

Roberto chegou mais cedo ao Parque Antarctica naquela tarde de 6 de maio de 1917. Nordestino, era Corinthians por ser do povo que chegara em São Paulo logo depois da fundação do clube, em 1910. Órfão de pai perdido na bebida e da mãe afogada por esse desgosto, não tinha casa. Nem mais família. Perdera a Mariazinha que se engraçara com o dono da venda. Perdera o emprego no centro. Só não perdia o Corinthians que aprendera a amar sem perguntar. Como todo amor.

 

Ademir era o único filho brasileiro de famiglia de cinco oriundi. Os dois mais velhos ficaram na Itália dos pais. A irmã morrera de tifo. O outro se perdeu na estrada. A mãe morreu a bordo vindo de Genova. O pai abraçou nova família no interior. Ele estava sozinho. Sem ocupação e preocupação além da nova paixão – Palestra. Foi conhecer o Parque Antarctica que ainda não era do Palestra Italia. Ele era palestrino por ser Itália como a pátria da mamma morta e do babbo que morrera para ele. Como o amor que ele sentia pela Nina. Menina que ele jurara amor. Mulher que um dia saiu e nem bilhete rabiscou.

 

Roberto e Ademir se encontraram no Parque da Companhia Antarctica. Conversaram antes da porfia. Falaram de Mariazinha e Nina durante o prélio. Do berço enquanto se disputava o cotejo. Dos pais ausentes nos embates como aquele. Amores partidos como aquela pugna renhida. Da primeira partida entre os dois amores. Viram Caetano marcar o primeiro, o segundo, e o terceiro gol de Palestra 3 x 0 Corinthians. isso, Izzo! O primeiro clássico que se chamaria Dérbi.

 

Ademir e Roberto saíram do Parque Antarctica e beberam quase todas e por quase tudo. Sabe-se lá como, foram parar na Ponte Grande, na Zona Norte da cidade, onde hoje existe a Ponte das Bandeiras. Por lá Roberto mostrou a Ademir as obras do estádio corintiano, ali pertinho, onde depois seria o Tietê. O novo field ficaria pronto em março do outro ano. Inaugurado em novo jogo entre corintianos como Roberto e palestrinos como Ademir.

 

Combinaram de se encontrar na inauguração. Ademir subiu então sobre o gradil da Ponte Grande sobre o Tietê como se fosse fazer um discurso de agradecimento pela hospitalidade do novo anfitrião. No primeiro gesto com os braços, perdeu o equilíbrio e caiu no rio. Roberto, ato contínuo, pulou atrás do novo amigo.

 

Não havia pai para cobrar a polícia, nem imprensa para cobrir os desaparecidos. Nem patrão para saber dos trabalhadores sem emprego. Mariazinha para abrir a porta de casa, Nina para abrir os braços. Ademir caiu, Roberto pulou em seguida, e o Tietê os levou na noite do primeiro Dérbi.

 

Quem me contou essa estória foi um sonho que tive ao acordar com um pesadelo de que não haverá mais em Itaquera a chance de um Roberto começar com um Ademir uma história de amizade. Porque depois de 100 anos não pode mais um corintiano dividir amores, dores, licores com um palmeirense. É "torcida única". Em Itaquera e na arena onde era o do Parque da Antarctica. Ninguém vai pular no rio para salvar um amigo que é apenas adversário. O que pode acontecer mesmo é "torcedores" se pegarem em nome inominável da rivalidade e um deles ser jogado no rio como aconteceu não faz muito tempo numa refrega entre eles.

 

Mas deve ter sido pesadelo meu. Torcida única não existe. Nem em sonho.

 

Os realistas vão dizer que quem não existe mesmo é esse tal do Roberto corintiano de 1917, o tal do Ademir palestrino de 1917. Os mesmos infiéis e fiéis que também não lembram ou não sabem como foi parar no Parque São Jorge o Reizinho que era palmeirense e se chamava Roberto, Rivellino, e não foi aceito no Parque verde. Como foi ser Divino palmeirense o Ademir filho do divino zagueiro corintiano Domingos, que um dia quase treinou no maior rival.

 

Pelas torcidas únicas, Rivellino teria de ter sido sempre alviverde. Ademir da Guia teria de seguir o roteiro do seu Domingos, que o queria vestido de preto e branco quando garoto.

 

A vida vira o jogo. E o Dérbi tem mesmo situações inexplicáveis. Muitas delas que talvez tenham as impressões celestiais do Roberto e do Ademir. Eles que se fizeram amigos em pouco mais de 90 minutos. Eles que, nesses 100 anos, começo a entender, estiveram com Romeu e Imparato nos 8 a 0 do Palestra, em 1933. Troco que Roberto daria fazendo o Pequeno Polegar Luisinho marcar de cabeça o gol do Quarto Centenário, em 1954. Dando um troço no Ademir pelo Rio-São Paulo das Cinco Coroas verdes de 1951.

 

Ronaldo fez o gol de 1974 naquela bola que Leivinha subiu mais alto – com o Ademir de 1917 talvez o puxando lá de cima. Canela do Biro-Biro alvinegro e também do Roberto de 1917 na semifinal de 1979. Ademir fez com as coxas de Mirandinha a justiça em 1986, que o coice do Claudio Adão foi o Roberto quem arrumou em 1989.

 

Roberto foi incitar com o porco do Viola em 1993, que o Evair respondeu pelo Ademir na volta. O Edmundo estava com o espírito do Ademir no Rio-São Paulo de 1993, e o Rivaldo também, no Brasileiro de 1994. O Roberto cantou a bola que o Elivelton mandou no ângulo, em 1995. Marcos teve os cantos cantados pelo Ademir, em 1999 e 2000. Como o Roberto jogou na nuca do Edilson aquelas bolinhas de 1999.

 

Roberto e Ademir ergueram os punhos no Brasileiro de 2011 para homenagear o Sócrates. Juntos. Como o corintiano falou pro Júlio César defender aqueles pênaltis no Pacaembu naquele Paulista de 2011. O palmeirense acabou com o Petros pelas mãos de Prass, em 2015. O Dudu tirou o boné do Ademir em 2016 de tanta onda que o Roberto tinha tirado com o Romarinho desde 2012.

 

Tantos jogos e tentos, craques e bagres, taças e copas. Tanta explicação que a gente não sabe como. Mas eu sonhei agora que tem algo além. Vem lá do leito sem vida do rio. Do Roberto e do Ademir que partiram na primeira partida em 1917. Amigos que o Dérbi perdeu. Espíritos que desde então nos ajudam a entender que futebol é para fazer amigos.

 

Desde que pulemos de cabeça e coração em nome do que é sagrado. Desde que respeitemos as dores da vida e usemos o futebol para fazer mais gente e nos fazer mais gente.

 

Roberto e Ademir não são fantasia. São a alegoria da alegria que é poder encontrar amigos pela vida. Criaturas que o futebol nos dá e, por vezes, nos tira quando saímos atirando nas cores que não são nossas.

 

O que seria do Ademir sem o Roberto e do Roberto sem o Ademir? Nossos prazeres são ainda maiores com as derrotas alheias no campo de jogo. Nossas dores são menores quando compartilhadas com amigos de credo.

 

Vamos celebrar os primeiros 100 anos do Dérbi sem violência. Vamos mergulhar de cabeça.  

Sobre o Autor

Mauro Beting é comentarista do Esporte Interativo e da rádio Jovem Pan, blogueiro do UOL, comentarista do videogame PES desde 2010. Escreveu 17 livros, e dirigiu três documentários para cinema e TV. Curador do Museu da Seleção Brasileira, um dos curadores do Museu Pelé. Trabalhou nos jornais Folha da Tarde, Agora S.Paulo e Lance!, nas rádios Gazeta, Trianon e Bandeirantes, nas TVs Gazeta, Sportv, Band, PSN, Cultura, Record, Bandsports, Foxsports, nos portais PSN, Americaonline e Yahoo!, e colaborou nas revistas Placar, Trivela e Fut! Lance. Está na imprensa esportiva há 28 anos por ser torcedor há 52. Torce por um jornalismo sério, mas corneta o jornalista que se leva muito a sério

Sobre o Blog

O blog fala, vê, ouve, conta, canta, comenta, corneta, critica, sorri, chora, come, bebe, sofre, sua e vive o nosso futebol. Quem vive de passado é quem tem história para contar. Ele tem a pretensão de dar reload no que ouvi e li e vi e fazer a tabelinha entre passado e presente para dar um toque no futuro.

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