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Blog do Mauro Beting

Vasco, o time da virada e do seu Luiz

Mauro Beting

20/09/2019 15h17

Nunca entendi como aquele Palmeiras limitado enfiou 3 a 0 no primeiro tempo naquela seleção do Vasco, na terceira decisiva da Mercosul de 2000. Osmar de Oliveira narrava comigo na PSN e perguntou se já tinha tudo acabado no intervalo. Respondi que futebol tinha essas coisas e que tal e falei que ainda não tinha… Mas já estava.

Mas não esteve. Romário e Juninho Paulista guiaram o Vasco do estreante Joel Santana a um espetacular 4 a 3 no Palestra. Uma das mais fantásticas viradas do futebol. Inesquecível.

Mesmo.

Porque quem não conseguia mais lembrar da vida por ser vítima de síndrome de Korsakoff era o seu Luiz nos últimos anos. O consumo abusivo de álcool o levou ao hospital por um ano, também com a memória perdida como aquela final.

Lembrança que só tinha jogo quando o neto Lucas o visitava e com ele cantava o hino do Vasco do avô, mas não dele. Luiz iluminava o rosto e seguia junto. Como com o neto botafoguense reviu no hospital a virada de 2000. O bug do milênio palmeirense. A vitória do time da virada e do seu Luiz.

Quando Romário fez o quarto gol há 18 anos, parece que foi ontem para o avô do Lucas. Ele entendeu e sorriu como se voltasse a compreender o incompreensível.

Nada na vida dele nos últimos anos ele conseguia mais guardar. A não ser a loucura daquela noite.

Seu Luiz partiu ontem. O neto que trabalha com História e Direito deixou a linda homenagem que publico no meu blog no @uolesporte.

Agora eu começo a entender tudo que aconteceu aquela noite. Minto. Ainda não entendi. Mas fico menos abalado por aquela derrota. Ela serviu para um botafoguense e um vascaíno se reconectarem como por mágica. Por milagre.

Muito melhor: pelo amor ao que nos faz mais humanos.

Mais futebol.

ESCREVE LUCAS ANTUNES

Enquanto o assistente sinaliza ao público na plataforma que o trem está prestes a partir, os que olham mais de perto parecem não entender. Os vagões estão vazios e o painel não mostra um destino convencional. Algo enigmático está acontecendo com aquele comboio específico. Nele, o único passageiro a embarcar é Luiz Carioca. O senhor, usando traje social com suspensório, entrega sua mala marrom e dirige-se à luxuosa cabine que reservara para a derradeira viagem.

O misterioso homem tem semblante pacato, parece aliviado ao sentar na cadeira. Quando o faz, suspira profundamente, se ajeita e puxa do bolso uma foto. Nela, estão seus pais, irmã e filhos sorridentes na sala de estar. No verso, uma mensagem escrita por seu neto desejando boa estadia e pedindo uma lembrança do local que o avô iria visitar. Luiz procura o serviço de bordo para pedir uma água, mesmo tendo os mais sofisticados whiskys e conhaques à disposição.

Quando o refresco chega, ele não hesita em tomar um bom gole e agradecer. O jovem empregado da companhia, então, oferece um cigarro. Luiz, que um dia já teve o hábito do tabagismo, recusa prontamente, não sente mais necessidade. Fitando o horizonte, o filho do "Galo" – apelido dado ao seu pai em virtude da exímia habilidade em jogos de cartas nos salões cariocas – começa a lembrar de tudo. Sim, lembrou dos momentos marcantes que vivera, coisa que era incomum nos últimos anos.

Luiz Carlos Alves era teimoso, tijucano marrento daqueles entusiastas do bairro, sócio do Tijuca Tênis Clube e do Club de Regatas do Vasco da Gama. Custava dar o braço a torcer. Nunca se curvou diante daquilo que repudiava. Era tão aficionado pela vida que, em uma dada oportunidade, seu coração parou por longos vinte minutos. O relógio de ponteiro com detalhes em ouro girou e Luiz Carioca bateu o pé. Viveu. Ah, como viveu. Ia de Rio das Ostras para o Rio em um pulo, ainda que Ruth, sua esposa, desaprovasse. Visitava a fazenda em Goiás e, subitamente, já estava pescando na Urca. Depois, se arrumava para ver seu cavalo no Jockey Club Brasileiro.

Numa profusão de sentimentos, consulta novamente o relógio e se transporta para 2000. Três a zero. Acabou. Não dá mais. Pior que deu. O Vasco, virou, amigos – seu neto o faz recordar. Romário estufa as redes e o Cruzmaltino ergue a taça da Mercosul! Luiz vibra como vibrou naquela noite. Parecia viver a euforia do momento pela primeira vez. Afinal, há muito tempo não o reaproximavam dessa memória guardada no subconsciente. Para celebrar o título, seu neto, botafoguense, abraça o vô e entoa baixinho o hino vascaíno. Não há enfermidade que apague. Está grifado. Ele parece acompanhar o canto com movimentos corporais.

De repente, ele sacode a cabeça e volta sua atenção ao trem. Já é noite. Parece que ele passou horas revivendo tudo mentalmente. Nada mais justo, já que ficou anos sem poder em virtude de uma maldita síndrome. Todavia, agora passou. Está curado. O maquinista diminui a velocidade. O responsável pelas caldeiras cessa o carvão. Enfim, chegou. Luiz Carlos Alves, então, levanta-se, ajeita a roupa, deixa uma generosa gorjeta e caminha em direção à porta. Quem o recebe acenando é Agostinho, seu pai. Os dois se abraçam e já começam a tratar sobre os assuntos da família. No fim das contas, é assim que tem que ser.

Até logo, vô. Vê se descansa. Você tava precisando.

ESCREVEU LUCAS ALVES ANTUNES

Sobre o Autor

Mauro Beting é comentarista do Esporte Interativo e da rádio Jovem Pan, blogueiro do UOL, comentarista do videogame PES desde 2010. Escreveu 17 livros, e dirigiu três documentários para cinema e TV. Curador do Museu da Seleção Brasileira, um dos curadores do Museu Pelé. Trabalhou nos jornais Folha da Tarde, Agora S.Paulo e Lance!, nas rádios Gazeta, Trianon e Bandeirantes, nas TVs Gazeta, Sportv, Band, PSN, Cultura, Record, Bandsports, Foxsports, nos portais PSN, Americaonline e Yahoo!, e colaborou nas revistas Placar, Trivela e Fut! Lance. Está na imprensa esportiva há 28 anos por ser torcedor há 52. Torce por um jornalismo sério, mas corneta o jornalista que se leva muito a sério

Sobre o Blog

O blog fala, vê, ouve, conta, canta, comenta, corneta, critica, sorri, chora, come, bebe, sofre, sua e vive o nosso futebol. Quem vive de passado é quem tem história para contar. Ele tem a pretensão de dar reload no que ouvi e li e vi e fazer a tabelinha entre passado e presente para dar um toque no futuro.

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