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Blog do Mauro Beting

A história se repete como festa. Grêmio 0 x 1 Flamengo.

Mauro Beting

17/11/2019 18h20

Eu não marcaria o pênalti depois de grande lance de Arrascaeta (que tinha mesmo que jogar) que Gabriel Barbosa cruzou e a bola bateu num braço gremista e a arbitragem marcou. Como Gabigol fez mais um e o Flamengo mais uma vez foi espetacular. Ganhando de um Grêmio que vinha babando depois dos 5 a 0. Mas pouco fez contra um misto rubro-negro que, como todo o time, tem feito demais.

A ponto de se comparar com outra história brilhante. Campeã do Brasil depois de conquistar a América. Talvez um replay ao vivo em 2019. Uma história que se repete como festa.

Aqui recontada no livro "1981", escrito por André Rocha e por mim, lançado em 2011 pela Maquinária Editora.

O capítulo que fala da melhor de três do BR-82. No Olímpico em Porto Alegre, o favorito Flamengo venceu o Grêmio por 1 a 0 e foi campeão brasileiro. Tirando da equipe de Renato, então endiabrado camisa 7 tricolor, a chance do bicampeonato gaúcho.

O capítulo é este:

"Eu vou acertar as contas com um jogador do Grêmio". Era Nunes, antes da terceira decisão, no Olímpico. Antes de acertar um chute de fora da área e vencer o desafeto Leão, goleiro gremista. Aquele com quem que ele iria acertar as contas e outras coisas depois do jogo. Melhor assim: acertou com a bola rolando. Com o gol do bicampeonato brasileiro, naquele domingo de abril de 1982.
Novo empate levaria à prorrogação e, se preciso, aos pênaltis. Não foi preciso. Zico foi tão preciso, aos 10, como no dia anterior ao dar seu palpite para a final em entrevista ao repórter Raul Quadros, da TV Globo: "Vai ser 1 a 0, gol do Nunes." Caneta (janelinha, como se diz no Sul) de Zico em Vilson Tadei, e passe para Nunes, que escapou de Newmar e De León e marcou um belo gol. Conta Zico: "Sempre pedia para o Nunes abrir quando eu viesse com a bola para o ataque. Eu sempre buscava o centroavante, que estava mais próximo ao gol. Meti a bola entre os zagueiros para o Nunes e caixa!".
Foi a primeira das apenas quatro chances rubro-negras na decisão contra 12 gremistas. Mais uma vez o Flamengo não jogou mais que o rival. Mais uma vez deu Flamengo, do mesmo modo. Leão não mede elogios:
– Eles tinham Adílio, Júnior, Andrade, o Zico que fazia diferença, o Nunes que era um centroavante raçudo, um goleiro excelente como o Raul, o Leandro, nem se fale! O Flamengo trocava um jogador pelo outro e seguia igual, também pelo entrosamento deles. Eles eram muito superiores ao nosso time. Sabiam que podiam sempre ganhar. A questão era saber de quanto.
O entusiasmo tricolor já não era o mesmo em relação à segunda partida. Menos gente foi ao Olímpico. Parecia que a chance do bi gremista havia sido perdida no empate sem gols. Dificilmente o Flamengo jogaria tão pouco. No primeiro lance, Zico meteu a caneta no implacável Batista e serviu para Nunes dividir com Leão. O goleiro deixou o cotovelo no João Danado. O árbitro marcara antes uma falta de Nunes. Seria o último encontro entre eles até o gol.

Até então, só daria Grêmio. O substituto do lesionado Tarciso, o jovem Renato ainda não chamado de Gaúcho chapelou Júnior com 5 minutos. Só não abriu o placar em seguida porque Raul fez a primeira das sete grandes defesas da tarde. Com modéstia e humor, o goleiro costuma dizer que não precisava se esforçar muito naquele Flamengo: "Eu mais assistia aos jogos daquele timaço que realmente participava deles. Além da capacidade técnica, eram meninos muito inteligentes, que sabiam correr pelo time, como o Tita. Sem contar gênios como o Zico, que me deu muitos bichos e apartamentos".
Mas, naquele jogo, Raul, mesmo ainda com as dores na coluna que quase o tiraram do segunda partida,  não foi o "paletó velho", apelido dado por não se esforçar taaanto assim nos treinos. "Se você tocava do lado dele, no treinamento, ele não ia de jeito nenhum na bola", entregava o centroavante Claudio Adão, companheiro de clube até 1979. "O Zico me pedia: 'Raul, pula só em um chute, vai. Só um! Aí vinha uma bola apenas durante o jogo e ele bronqueava: 'O Véio! Se for para ficar só olhando, eu vou aí no seu lugar'" [risos]. Andrade conta outra:
– O melhor do Raul era a calma. O jogo pegando fogo e ele lá, tranquilão… Mas sabia liderar também. E era um cara muito engraçado. Nós fomos jogar um amistoso contra o Criciúma, em 1982. O Cantareli substituiu o Raul e levou um gol em que a bola bateu no travessão, nas costas dele e entrou. O Raul garantiu: "Eu não tomaria aquele gol!" Perguntei: "Por quê?" Ele: "Porque eu nem ia pular na bola, ela ia bater na trave e voltar!" [risos].
Mas não veio apenas uma bola, em Porto Alegre. Pelo menos sete grandes defesas fez Raul. "Honestamente, não recordo de um jogo inesquecível meu pelo Flamengo. A bola não chegava muito… Eu fui um goleiro razoável. Mas com uma sorte espetacular!"
O Flamengo mais uma vez atuava com Lico na direita e Tita na esquerda. E a partida mais uma vez era pegada. Fora de forma, o árbitro paulista Oscar Scolfaro acompanhava o jogo à distância. De longe viu o belo gol de Nunes. Apenas o quinto dele no BR-82 em 14 dos 23 jogos do time. O suficiente.
O Grêmio não sentiu o baque. O centroavante Baltazar e os meias Paulo Isidoro e Tonho estavam apagados. Ainda assim, a pressão era grande. O Flamengo só começou a tirar o Grêmio da área a partir da metade do primeiro tempo. Mesmo passando sustos desnecessários: Nunes resolveu sair jogando, aos 26, perdeu a bola e quase deu em gol de Baltazar. Zico baixou o relho no companheiro. Coisa de time vencedor. Resolve no grito em campo, e não leva gols tolos mesmo quando faz bobagem.
Renato seguia mandando pela direita. Por melhor que se virasse Júnior, faltava mais ajuda de Tita. Mas não de Andrade. Se Renato passasse por Júnior, lá estava o volante das decisões. Não apenas Nunes fazia tantos gols em partidas essenciais. Andrade salvava outros tantos gols rivais, ou desarmava jogadas de perigo.
Não era apenas uma disputa pelo título. Também pela Copa da Espanha. No dia seguinte, Telê convocaria a Seleção para o Mundial de 1982. Andrade disputava um lugar com o seu reserva Vítor e, principalmente, contra outro monstro presente no Olímpico. Batista, de ótima Copa na Argentina, em 1978. De notável atuação contra Zico. Menos no lance do gol de Nunes… Batista foi o convocado. Andrade, o desolado: "Na época fiquei chateado, e muito. Hoje, como treinador, respeito a opção do Telê. Aquele time do Flamengo merecia ser a base da Seleção".

O Grêmio reclamou um pênalti de Figueiredo em Tonho, aos 36, depois de mais uma grande defesa de Raul. Ele e Andrade garantiram a vitória rubro-negra no primeiro tempo. A segunda etapa foi mais do mesmo. O Grêmio atacando, Andrade limpando a área, Raul garantindo o resto. A bola não parava no ataque carioca. Zico não tinha muito espaço. Tita armava por ele. Lico não dava sequência nos lances. Tonho caía por dentro, e Leandro vinha na cola. Era jogo para o ponta-esquerda Odair. Mas Ênio Andrade não mexia no Grêmio. Aos 10, a torcida tricolor pedia o centroavante Paulinho no lugar de Baltazar. E exigia o gol de empate numa confusão histórica na meta rubro-negra. Tonho bateu fechado escanteio da esquerda, Newmar cabeceou para o chão, Raul e Paulo Isidoro dividiram bola que subiu e estava entrando até Raul dar um tapa nela. A reclamação gaúcha era dupla: a bola entrara; e, caso tivesse sido salva antes disso, teria sido por um jogador de linha, não por um goleiro. Explica Andrade:
– Não lembro direito do lance… [risos]. Só me recordo dos dois jogadores do Grêmio correndo na minha direção. Pensei: "Esses caras vão me empurrar com bola e tudo!" Então toquei na bola [faz um gesto com a mão] e depois o Raul tirou. Mas, sinceramente, não lembro direito daquele lance, foi muito confuso…
É muito difícil, até pela TV, precisar se a bola entrou ou não. A impressão inicial é que não passou inteira pela linha de meta. Não foi gol. Apenas mais um susto carioca. Para Raul, a confusão quanto ao toque de mão se deve à manga preta da camisa amarela que usava: "Estendi o braço na bola. Para alguns parecia o Andrade. Pior é que, já no ônibus, saindo do estádio, brinquei com gente do Grêmio que veio me perguntar do lance. Eu disse que realmente fizera a defesa. Mas que a bola já estava dentro… Foi aquele fuzuê" [risos].
Zico dá a versão dele: "Foi o Raul que tirou. Eu estava na frente do lance. Não foi nada". Leão contesta: "A bola entrou. Teve ainda outro pênalti para o Grêmio. O Flamengo tinha mais time que o nosso. Mas ganhou por causa do erro do árbitro e pelo fato de o Rio sempre ter um futebol poderoso dentro e fora de campo".
O Flamengo respondeu em jogada sensacional de Zico, num corta-luz que serviu Júnior para dar um drible-da-vaca em Paulo Roberto. Mas o Grêmio ainda era mais time. Aos 21, enfim Paulinho no comando de ataque. Carpegiani teve de sacar Leandro, com lesão no tornozelo esquerdo, aos 25. O lateral-direito Antunes veio para o jogo. Filho de Ferrugem, ex-roupeiro do clube, falecido um ano antes. O Grêmio parecia cansado. Júnior equilibrava o duelo contra Renato. Mérito do Capacete:
– Essa coisa de "tudo nas costas do Júnior" aconteceu em alguns jogos, mas se você pegar setenta partidas em um ano, talvez tenha ocorrido em 10% delas. Agora vai ver em quantas partidas essa minha movimentação proporcionou gols e jogadas! Mas isso não incomodava porque os treinadores preferiam que eu saísse para apoiar. Eu não era indisciplinado taticamente, tinha autorização. Em muitos jogos, como na final em que eu tive que marcar o Renato [Portaluppi], eu fui lá e marquei. Eu não era o Wladimir do Corinthians, mas tinha noção de marcação, posicionamento defensivo.

Carpegiani corrobora: "Leandro e Júnior vinham por dentro, fazendo a diagonal e entrando em facão, como a gente diz. Eu tinha de usá-los ofensivamente. Eram brilhantes". Ênio apostou em Odair para cima de Antunes, aos 29. Nem assim o Grêmio chegou como vinha atacando. Carpegiani fechou tudo aos 31, com Vítor no lugar de Nunes. A bola era mais rubro-negra. A arquibancada, também. Aos 37, o grito de "Meeeengooooooo" ecoou no Olímpico. Com Vítor à frente dos zagueiros, Lico, Adílio, Andrade e Tita na intermediária, e apenas Zico mais à frente, mas nem tanto, o Flamengo atuava no 4-1-4-1 e apenas esperava o apito final de Oscar Scolfaro.

O último suspiro de seis meses espetaculares do campeão da América, do Rio, do mundo e do Brasil em apenas 153 dias, entre 23 de novembro de 1981 e 25 de abril de 1982.

 

 

Esse foi o histórico Flamengo de 1981-82.

A vitória deste 17 de novembro de 2019 honra aquele futebol e aquele time.

Sobre o Autor

Mauro Beting é comentarista do Esporte Interativo e da rádio Jovem Pan, blogueiro do UOL, comentarista do videogame PES desde 2010. Escreveu 17 livros, e dirigiu três documentários para cinema e TV. Curador do Museu da Seleção Brasileira, um dos curadores do Museu Pelé. Trabalhou nos jornais Folha da Tarde, Agora S.Paulo e Lance!, nas rádios Gazeta, Trianon e Bandeirantes, nas TVs Gazeta, Sportv, Band, PSN, Cultura, Record, Bandsports, Foxsports, nos portais PSN, Americaonline e Yahoo!, e colaborou nas revistas Placar, Trivela e Fut! Lance. Está na imprensa esportiva há 28 anos por ser torcedor há 52. Torce por um jornalismo sério, mas corneta o jornalista que se leva muito a sério

Sobre o Blog

O blog fala, vê, ouve, conta, canta, comenta, corneta, critica, sorri, chora, come, bebe, sofre, sua e vive o nosso futebol. Quem vive de passado é quem tem história para contar. Ele tem a pretensão de dar reload no que ouvi e li e vi e fazer a tabelinha entre passado e presente para dar um toque no futuro.

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