Leicester. A epopeia. Since 2013.
Mauro Beting
02/05/2016 12h50
50min38s do segundo tempo do playoff que aponta quem vai pra Wembley encarar o Crystal Palace, na decisão em jogo único para definir quem ainda sobe para a Premier League em 2013-14: pênalti que eu não marcaria para o Leicester, de Cassetti em Knockaert. Um "soft penalty" como se diz na Inglaterra.
Knockaert vai bater o pênalti. Se fizer, evita a prorrogação iminente, e se classifica para a decisão do acesso; se perder, mais meia hora de prorrogação
O próprio Knockaert vai bater para o Leicester. 51min34s: o chute de canhota dele vai em direção à meta do Watford. Manuel Almunia é o goleiro do dono da casa. Watford que perdera o jogo de ida por 1 a 0, em Leicester. Estava 2 a 1 para o Watford, em casa. Era só Knockaert converter o pênalti para o visitante e empatar o jogo. Estaria classificado para a decisão em Wembley.
Se o winger do Leicester errasse o pênalti e não empatasse aquele jogo de volta, o 2 a 1 para o Watford ainda assim levaria a disputa por uma vaga na final para a prorrogação. Mais 30 minutos de jogo em Watford.
Ou bastaria aquele chute do Leicester entrar.
Knockaert bateu no meio do gol. Almunia pulou para o canto esquerdo. Mas a bola bateu nos pés do goleiro e ficou amortecida para o rebote do cobrador.
Knockaert chegou primeiro e mandou ver. Almunia salvou com o peito o tiro à queima-luvas.
Duas chances para o Leicester se classificar sem prorrogação. Aos 51 do segundo tempo.
Perdidas.
No segundo rebote, Cassetti, que cometera o pênalti, deu um bico para o alto. A câmera da transmissão da segunda divisão inglesa focou o herói espanhol Almunia. As arquibancadas de Vicarage Road tremiam. A imagem também.
Mais 30 minutos de chances para as duas equipes na prorrogação… É o que parecia depois de bons 90 minutos. Watford tinha aberto o placar com um golaço do atacante tcheco Vydra, escolha de última hora do treinador Gianfranco Zola, ex-craque da Azzurra. Um voleio daqueles de Van Basten, de canhota. O Leicester empatou, de cabeça, em seguida. Vydra fez 2 a 1 em bela tabelinha, no segundo tempo. Vydra que não fazia gols havia 12 jogos. Prorrogação que seria evitada aos 51 minutos se Knockaert tivesse feito o pênalti que desperdiçou, e o rebote também…
Cassetti deu o bicão que caiu nos pés de Anya. Ele dominou a iniciou a correria pela direita. Encontrou Forestieri pela direita. Eram 51min46s. O que era chateação do Leicester por ter perdido a chance de evitar a prorrogação passou à preocupação com o contragolpe. Essa arte letal que, em 2015-16, o time de outro treinador italiano – Claudio Ranieri – domina muito bem. Desta vez, no banco do Leicester. Onde, em 2013, Vardy apenas observava e lamentava o pênalti perdido.
Forestieri avançou pela direita. Cruzou no segundo pau para Hogg, outro que entrara no segundo tempo. O goleiro do Leicester saiu nele, no desespero, desguarnecendo a meta. Hogg escorou para o meio da área para a chegada do atacante Deeney.
Deeney enche o pé, 19 segundos depois da cobrança de pênalti do adversário . Generated by IJG JPEG Library
Era um domingo, 12 de maio de 2013. Na hora em que o jogo acontecia, eu estava acordando para o meu primeiro café da manhã de casado com a loirinha que tinha sido meu amor à primeira vista, 29 anos antes. Ela casou e teve três filhos. Eu casei e tive dois. Nós casamos com os cinco filhos de padrinhos. Depois do casamento eu tive de sair correndo para trabalhar na decisão do SP-13. Não tive lua de mel. Mas o casamento com o amor da minha vida compensa tudo.
E o que isso tem a ver com aquele contragolpe e com aquela bola espirrada para Deeney?
Naquele instante de 12 maio, eu estava realizando um sonho maravilhoso, e era, como ainda sou, um cara de muita alegria e muita sorte.
Deeney, o atacante que marcou o gol da classificação do Watford, estava saindo de um pesadelo para um delírio inimaginável.
Junho de 2012: poucos dias depois de completar 24 anos, semanas depois de perder o pai aos 47 anos, de câncer, Deeney foi sentenciado a 10 meses de cadeia. Ele brigou em um bar e chutou a cabeça de um estudante.
Conseguiu deixar a prisão em Birmingham em setembro, depois de passar o tempo limpando a academia de ginástica, onde conseguiu permissão para manter a forma. Voltou bem ao time. Com tempo para marcar 19 gols na temporada.
Até aquela bola passada por Hogg chegar ao pé direito dele. Schmeichel, o goleiro do Leicester, voltou a tempo de fechar o ângulo.
Mas não o suficiente para evitar a batida de sem-pulo que estufou as redes do Leicester. Era o 20o gol dele na temporada. Exatos 19 segundos depois de perder um pênalti e a chance de se classificar para a decisão em Wembley, o Leicester tomou o terceiro gol que o eliminou do playoff de acesso para a Premier League.
Em 19 segundos, o Leicester poderia ter evitado 30 minutos de prorrogação. Por 19 segundos, teria de jogar mais 30 minutos. Ao final dos 19 segundos, nem prorrogação. Ficaria mesmo na segunda divisão, em 2013-14.
Deeney fez o gol que você no vídeo abaixo, desde o pênalti perdido por Knockaert. Ou defendido duas vezes por Almunia.
VEJA: WATFORD X LEICESTER, PLAYOFF SEMIFINAL 2012-13 Os 19 segundos mais futebol da Inglaterra
Deeney que começara a temporada preso terminou o jogo arrancando a camisa e pulando na torcida que invadiu o gramado em Watford, em um dos finais de jogos mais apoteóticos da história. A Batalha dos Aflitos de Watford.
Em Wembley, no jogo seguinte, teve prorrogação. Teve pênalti. Teve vitória do Crystal Palace. O Watford eliminou o Leicester no jogo épico, mas não subiu naquele ano. Nem em 2014: O Leicester derrotado em 2013 seria o campeão em 2014 da Championship. O Watford ficou apenas no 13o lugar. Subiria apenas em 2015, como vice-campeão. No mesmo ano em que o Leicester teve arrancada fulminante nos últimos 10 jogos, e conseguiu o milagre da salvação para 2015-16.
2 de maio de 2016: em algumas horas, se o Tottenham não vencer o Chelsea, em Stamford Bridge, o Leicester será campeão sem precisar jogar as duas últimas rodadas para ser o que ninguém, NOBODY, poderia imaginar.
Ainda mais com Ranieri o comandando…. Como eu disse na transmissão da primeira partida dele, no início da temporada…
Hoje, como em muitas das tantas partidas da temporada passada, quando o Leicester tinha de vencer e secar quase todos os rivais, os foxes torcem contra um time. Ou a favor de outro. Não importa. Torcem mais contra que a favor. As contas são muito mais fáceis que as de outros anos. E ainda parecem o sonho negado daquele domingo de maio de 2013.
Que torcedor do Leicester não imaginou, então, que o time jamais voltaria a subir depois daquele perdido em 2013, e do gol sofrido, e como foi sofrido, há três anos?
E, se o Leicester subisse, como subiria um ano depois, "lógico" que iria cair como quase desabou em 2015?
Ainda no vestiário mais dolorido dos então 129 anos de história do Leicester, o treinador dos foxes disse que tinha certeza que, no ano seguinte, a equipe subiria. E subiu. Fala Nigel Pearson:
– Eu não conheço derrota mais dolorida que essa. Meus jogadores não a mereciam. Foi uma lição muito dura. Mas vamos aprender algo com ela.
No banco de reservas em Watford, o volante titular de hoje, Drinkwater, certamente aprendeu. Não esquecem o goleiro Schmeichel e o zagueiro Morgan, autor do gol de empate do primeiro dia de maio de 2016 contra o United, no Teatro dos Sonhos em Manchester. De Laet saiu do clube em janeiro de 2016, e era o lateral-direito em 2013. Schlupp segue na outra lateral. King e James também estavam no meio-campo. E também por isso todos eles e muitos mais estão muito vivos para o jogo de hoje em Londres. Partida que pode dar o título que não pode escapar como aquela vitória há três anos.
Classificação negada em 2013 por Almunia, que entrou em campo lesionado. Esforço que valeu pela vida:
– O rosto dos meus companheiros depois daquela vitória é algo que não tem como explicar. Só o futebol para nos dar emoções assim.
Deeney, o artilheiro que era presidiário até setembro de 2012 e virou herói em maio de 2013, depois dos 3 a 1:
– Depois do gol, arranquei a camisa e corri para os braços da minha família que suportou esses meses sem salário e sem o marido e o pai presentes em casa.
Deeney acreditava nele. E no time depois do pênalti defendido por Almunia.
– Vocês podem dizer que é mentira. Mas depois que o Manuel defendeu o pênalti, eu tinha certeza que, no contragolpe, nós faríamos o terceiro gol.
O treinador Zola também tinha essa certeza. Só não sabia mais nada quando saiu correndo pelo gramado para celebrar o gol. E ainda escorregar e voar de alegria.
– Eu não sabia o que fazer. Senti os meus pés escorregando e caí feio. Mas cairia quantas vezes fosse preciso para sentir de novo esse momento. É a paixão. É por isso que todos nós amamos esse jogo. Mas eu confesso que, naqueles longos segundos entre o pênalti e o nosso gol, pensei no que acontecera entre Brentford x Doncaster.
Voltando ainda mais no tempo para 27 de abril de 2013. Semanas antes do épico Watford 3 x 1 Leicester.
Pênalti aos 50 do segundo tempo para o time da casa. O Brentford. Zero a zero. Se o artilheiro Trotta marcasse, o time subiria para a segunda divisão inglesa. A derrota levaria o Doncaster Rovers para os playoffs. O empate bastaria para o acesso dos visitantes.
Foi pênalti de Furman em Diagouraga. Trotta encheu o pé de canhota. A bola explodiu no travessão, quicou no chão, e ficou pererecando dentro da área. Até ser aliviada pra fora e encontrar aberto na direita Paynter. Ele avançou livre e serviu Coppinger.
18 segundos depois, em vez de sofrer o gol que o levaria ao playoff, o Doncaster fez o gol da vitória. E do título.
VEJA o pênalti perdido e o gtol do Doncaster
Ao Brentford sobrou a dor do acesso negado. O dever do playoff. E a derrota na luta pelo acesso, três jogos depois, para o Yeovil.
O Doncaster fez o milagre 18 segundos depois do pênalti perdido. O Warford, duas semanas depois.
O Leicester em 2016? Faltam algumas horas.
Ou 180 minutos.
Para uma emoção maior que a de 2013.
E, certamente, mais uma história sensacional.
Como um dia já disse o cineasta norte-americano Spike Lee:
– É impossível criar um roteiro mais emocionante que um jogo de futebol.
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Sobre o Autor
Mauro Beting é comentarista do Esporte Interativo e da rádio Jovem Pan, blogueiro do UOL, comentarista do videogame PES desde 2010. Escreveu 17 livros, e dirigiu três documentários para cinema e TV. Curador do Museu da Seleção Brasileira, um dos curadores do Museu Pelé. Trabalhou nos jornais Folha da Tarde, Agora S.Paulo e Lance!, nas rádios Gazeta, Trianon e Bandeirantes, nas TVs Gazeta, Sportv, Band, PSN, Cultura, Record, Bandsports, Foxsports, nos portais PSN, Americaonline e Yahoo!, e colaborou nas revistas Placar, Trivela e Fut! Lance. Está na imprensa esportiva há 28 anos por ser torcedor há 52. Torce por um jornalismo sério, mas corneta o jornalista que se leva muito a sério
Sobre o Blog
O blog fala, vê, ouve, conta, canta, comenta, corneta, critica, sorri, chora, come, bebe, sofre, sua e vive o nosso futebol. Quem vive de passado é quem tem história para contar. Ele tem a pretensão de dar reload no que ouvi e li e vi e fazer a tabelinha entre passado e presente para dar um toque no futuro.