O eterno jogo que não teve fim. Flamengo 0 x 0 Atlético-MG, Libertadores-81
Mauro Beting
28/10/2016 18h29
TRECHO DO LIVRO "1981", escrito por mim e André Rocha. Maquinária Editora, 2011.
A batalha começara bem antes, com provocações e acusações mútuas de mala branca. Como se um jogo extra da primeira fase da Libertadores-81 entre as melhores equipes do país, já saturado de rivalidade desde a decisão do BR-80, precisasse de algum "combustível" para motivar os jogadores.
O Serra Dourada estava lotado por mais de 65 mil presentes. No gramado desenhado bizarramente com temas geométricos, algo mais feio aconteceria em apenas 33 minutos de bola rolando. Ou tentando ser jogada por duas grandes equipes contaminadas pelo que há de pior em violência, antijogo, suspeições, suspensões. "Acho que, numa tourada, o sangue correria menos", contou Júnior em sua biografia.
O Atlético Mineiro lamentava a ausência do zagueiro Luisinho. No mais, era o time titular de Carlos Alberto Silva, com nove titulares da decisão do Brasileirão de 1980. Montado no tradicional 4-3-3 da época. O Flamengo não tinha Andrade na contenção, substituído pelo múltiplo Leandro na função de volante. Carlos Alberto era o lateral. Na intermediária, Tita era o meia aberto pela direita, e Baroninho fazia o vaivém pela esquerda. Zico organizava o jogo e se aproximava de Nunes.
O árbitro escolhido pelas duas diretorias era o carioca José Roberto Wright, que apitara bem a partida de ida, no Mineirão. Era o melhor do país à época. Mas não teve uma noite feliz. Para conter o jogo brusco, mostrou o primeiro cartão amarelo aos 5: Cerezo agarrou Tita pela camisa. Advertência justa. "Se eu não controlasse logo o jogo, iria perder o comando, ia ser uma…", afirmou o então comentarista de arbitragem da TV Globo. Se os atletas estavam nervosos, Wright parecia pior. Nunes reclamou de falta bem marcada. O árbitro se enfureceu e correu abruptamente em direção ao atacante. Não mostrou cartão, apenas um descontrole aparente.
Foi uma partida como outra qualquer para Wright:
– Nunca fiquei nervoso apitando futebol. Trabalhei em três finais de Libertadores, semifinal de Copa, um monte de jogo. Aprendi a me controlar no atletismo, nas provas de meia-distância em que fui atleta de seleção brasileira. Sempre entrei em campo seguro. Porque se você vai apitar pensando que vai errar, aí você faz uma cagada monstro.
O jogo crescia, com o Galo um pouco melhor. O Fla sentia a falta de Andrade na saída de bola. Embora nervosos e errando passes, nenhuma das tantas pancadas vistas, por exemplo, na decisão de 1980, eram repetidas pelos atletas. Aos 17, Wright exigiu respeito de Palhinha, que reclamava a esmo. Mas de um modo muito duro.
Aos 19, pelo conjunto da obra, e por uma rasteira em Leandro, Palhinha recebeu o amarelo. Discutível. Mas o meia-atacante mineiro não reclamou. O jogo não era bom. O lateral Orlando entrou duro, de carrinho, na bola, numa dividida com Baroninho. Na sobra, Mozer deu uma solada com as duas pernas em Vaguinho. O ponta alvinegro pulou para não ser atingido. A bola sobrou à frente, e Vaguinho descontou em Júnior, entrando feio por sobre a bola. Entre mortos e feridos, pelo rigor excessivo de Wright até então, seria lance para amarelo para Mozer e também para Vaguinho. Só o atleticano recebeu, e ficou calado.
Diferente do árbitro, que reiterou, segundo relato do repórter Raul Quadros, ao lado do gramado, que, na próxima [falta mais dura], "ele colocaria um para fora". Wright não esquece: "Chamei os dois capitães e falei mesmo. O primeiro que der uma porrada sai. E foi o que aconteceu".
Aos 26, jogo cada vez mais equilibrado, Éder puxou a camisa de Leandro na saída para o ataque e levou cartão amarelo. Wright mantinha o critério adotado. O árbitro também acertou aos 28, quando Mozer empurrou Vaguinho e recebeu o dele. Os jogadores não ajudavam. Se não batiam tanto, reclamavam de tudo. Especialmente os atleticanos, ainda com lembranças na alma e na carne das batalhas de 1980. Também por isso Wright começou a picotar mais o jogo, parando a partida por qualquer faltinha.
Aos 32, o jogo começou a acabar: Reinaldo levantou Zico numa tesoura por trás, na intermediária, atingindo o tornozelo direito do dez rubro-negro. Falta violenta e tola, numa zona morta. Pelos critérios adotados pelo árbitro, havia como mostrar o cartão vermelho. "O Wright dissera minutos antes que expulsaria o primeiro que fizesse uma falta por trás. O Reinaldo me deu uma tesoura e levou o dele". Comenta Júnior: "O Reinaldo nunca fizera na carreira uma entrada criminosa como aquela. Digna dos caras que na época batiam mesmo. Mas não ele". Wright concorda: "O Reinaldo não era indisciplinado. Mas deu aquela entrada por trás e foi expulso com justiça".
Palhinha deu um bico na bola. Atleticanos reclamaram bastante. Mas nenhum gesto foi mais acintoso que o de Wright. Ao perceber a chegada no círculo central do goleiro João Leite, que costumava entregar bíblias aos adversários antes dos jogos, o árbitro teve um chilique. "O Wright está mais nervoso que os jogadores", disse Telê Santana, convidado para comentar na TV Globo. O árbitro tirou a bola que estava nas mãos de Palhinha, deu a Figueiredo que bateu a falta e lançou à direita. O bolo de sete jogadores atleticanos que cercavam Wright logo se desfez e se dispersou para evitar o ataque carioca. Até o assistente Romualdo Arppi Filho ainda estava no grande círculo quando Wright autorizou o reinício de jogo…
33minutos. Acabou o futebol
O Atlético tentou contra-ataque pela direita. Vaguinho sofreu a falta. Eder foi pegar a bola e esbarrou no árbitro. Havia como o atleticano ter evitado o choque. Wright, então, tentou travar a bola para que ficasse no local da infração. Eder voltou para buscá-la, abaixou a cabeça, e, mais uma vez, esbarrou no árbitro, empurrando o peito dele. Wright puxou o cartão do bolso esquerdo da camisa. Vermelho. Éder já tinha amarelo, e, então, não era obrigado o árbitro a mostrar o segundo amarelo e, depois, o vermelho.
Eder olhou para o cartão, virou as costas para Wright e se ajoelhou, cobrindo o rosto com as mãos. O Atlético estava com nove em campo. De fato, muitos mais atleticanos naquele momento: todos os reservas, comissão técnica e cartolas invadiram o gramado.
Já fora do campo, Reinaldo falou para os repórteres:
– Não entendo o Zé Roberto [Wright]… Completamente intranquilo. Os juízes brasileiros não têm equilíbrio emocional. Transmitem esse desequilíbrio às duas equipes. Numa época dessas, a gente precisa ter muita calma.
Reinaldo não falava mais de um Brasil que tentava fazer uma transição "lenta, segura e gradual" da ditadura militar para a democratização. Luciano do Valle, narrando pela TV Globo, sintetizava o espírito e o ambiente: "O Reinaldo está muito mais tranquilo que o árbitro". Para Telê, "O Wright se perdeu. Ele é o melhor do Brasil, mas estragou o espetáculo. Sou inteiramente a favor da disciplina. Mas o árbitro não tem o direito de acabar com um jogo desse modo".
Wright:
– Eu não aturava a indisciplina, a violência. Lutei sempre para o atleta jogar bola. Sempre fui rigoroso. Num jogo em Cochabamba, Wilstermann x Olimpia, foi a mesma coisa. Expulsei cinco do time da casa, uma cagada monumental… Mas é por isso que fui eleito em 2011 o maior árbitro da história do futebol brasileiro, e, ao lado do uruguaio Jorge Larrionda, um dos melhores da América latina.
O Atlético começou a tirar o time de campo no que seriam os 35 minutos de jogo, com um cordão de policiamento. Aos 36, Chicão chegou perto de Wright e disse tudo que não se pode publicar. O árbitro não se moveu. Quando Chicão saiu, o árbitro foi na direção dele, mas foi seguro por João Leite. Wright decidiu sair da confusão e foi esperar no centro do gramado. Logo depois, o treinador Carlos Alberto Silva pediu para Chicão levar os demais companheiros para fora do campo. Ou fazer o famigerado cai-cai, quando os jogadores simulam lesões e não retornam a campo.
Palhinha foi expulso a seguir, aos 37. Zico dá a versão dele: "O Palhinha tinha mania de falar para o juiz que ele não era homem, que não tinha coragem de expulsá-lo… Aí o Wright pôs ele para fora". Palhinha confirma a história. O coro do estádio era de "Palhaçada, palhaçada!". Chicão foi expulso aos 38. Ainda no gramado, confessou ao repórter Raul Quadros que levou o cartão vermelho porque sugeriu ao árbitro que compensasse expulsando algum jogador do Fla. O Atlético ficava com sete jogadores em campo. Menos um e o jogo estaria encerrado.
Vaguinho desceu ao vestiário aos 39. Chicão passou em frente ao banco do Flamengo, bateu boca com alguns reservas, e palmas ironicamente para torcida rubro-negra. Wright ordenou que o policiamento limpasse o gramado. Éder deu entrevista: "É uma covardia com o povo que veio até aqui. Isto é um circo, está tudo armado por esse bando de palhaços."
Um cartola atleticano se exaltou e perdeu qualquer tipo de razão:
– O Atlético vai se recuperar pela manobra baixa que o Wright praticou aqui para a grandeza do futebol carioca! Eu pediria ao presidente [do Brasil, o general João Baptista] Figueiredo que ele pratique no futebol brasileiro o que, felizmente, para a salvação nacional, foi praticado na revolução de 1964! Infelizmente o futebol brasileiro não foi atingido por essa revolução salvadora!
Aos 43, dez minutos de confusão e invasão, os jogadores do Flamengo, sem graça, esperavam no centro do gramado. Aos 44, Wright pediu para Mozer a bola e a colocou no local da falta a favor do Atlético. Wright conversava com Zico. O estádio, agora quieto, aguardava.
Aos 45, Palhinha voltou ao gramado e falou com Wright. O árbitro chamou policiais para retirar o atleticano que saiu com mais alguns companheiros de time. Fala Palhinha:
– Eu tinha conversado com o Carlos Alberto Silva. Tínhamos quatro jogadores expulsos. Resolvi levar o Alexandre comigo e ele também falou um monte pro Wright. Era para ter sido expulso, nós então ficaríamos com seis, e o jogo teria de acabar. Mas o Wright falou que não adiantava, que não iria mais expulsar ninguém nosso… Aí só restou o João Leite cair no gramado machucado, ficamos sem ter como fazer a alteração, e o jogo acabou…
Mais dois minutos e os atleticanos voltaram para campo. Um cordão de policiamento correu junto à linha de fundo para evitar a invasão de torcedores, repórteres e aspones. Um flamenguista conseguiu invadir o gramado com a bandeira do clube.
Mas não teve mais jogo. O Galo não voltou a campo. A partida se encerrou sob vaias e gritos no Serra Dourada.
Comenta Júnior:
– Foi uma completa perda de equilíbrio por parte dos atleticanos. O presidente do Atlético [Elias Kalil] já tinha insinuado várias coisas. É lógico que o Atlético era um timaço. Mas a gente não precisava de ajuda para vencer.
Wright:
– Aquele jogo foi a continuação da decisão de 1980, no Maracanã. O Atlético se sentia prejudicado pelo Aragão, eles diziam que tinham sido roubados… O presidente Elias Kalil criou um péssimo clima antes, e levou seus jogadores a um estado de revanche.
Palhinha:
– Não sei se o Atlético foi mais prejudicado em 1980, pelo Aragão, ou em 1981, pelo Wright. No Maracanã, o Reinaldo foi expulso depois de o bandeirinha marcar um impedimento absurdo contra a gente. Em Goiás, o Wright começou a expulsar nosso time sem mais nem menos. Não entramos pilhados. Estávamos apenas espertos. Era muito difícil naquela época um time de Minas ganhar dentro de campo… Foi uma pena. Mas não tiro o mérito do Flamengo, que tinha um time sensacional e técnico como o nosso. Não quero desmerecer os títulos deles, mas as arbitragens não foram boas naquela época.
Em 4 de setembro, em Lima, o comitê executivo da Confederação Sul-Americana declarou o Flamengo vencedor por unanimidade por não ter sido o causador dos incidentes. Em seguida, foram divulgados os grupos da fase semifinal, definidos por sorteio. O colombiano Deportivo Cali e o boliviano Jorge Wilstermann seriam os rivais rubro-negros.
Os mineiros recorreram, sem sucesso. Até hoje reclamam de 1980 e 1981.
Sobre o Autor
Mauro Beting é comentarista do Esporte Interativo e da rádio Jovem Pan, blogueiro do UOL, comentarista do videogame PES desde 2010. Escreveu 17 livros, e dirigiu três documentários para cinema e TV. Curador do Museu da Seleção Brasileira, um dos curadores do Museu Pelé. Trabalhou nos jornais Folha da Tarde, Agora S.Paulo e Lance!, nas rádios Gazeta, Trianon e Bandeirantes, nas TVs Gazeta, Sportv, Band, PSN, Cultura, Record, Bandsports, Foxsports, nos portais PSN, Americaonline e Yahoo!, e colaborou nas revistas Placar, Trivela e Fut! Lance. Está na imprensa esportiva há 28 anos por ser torcedor há 52. Torce por um jornalismo sério, mas corneta o jornalista que se leva muito a sério
Sobre o Blog
O blog fala, vê, ouve, conta, canta, comenta, corneta, critica, sorri, chora, come, bebe, sofre, sua e vive o nosso futebol. Quem vive de passado é quem tem história para contar. Ele tem a pretensão de dar reload no que ouvi e li e vi e fazer a tabelinha entre passado e presente para dar um toque no futuro.