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A segunda decisão em 1981: Cobreloa 1 x 0 Flamengo

Mauro Beting

21/11/2019 23h16

Do livro 1981, escrito por mim e por André Rocha. Obra oficial do Flamengo.

https://youtu.be/j6Q8z9PYmsI

Jogo 2: Cobreloa 1 x 0 Flamengo – Estádio Nacional de Santiago, 20 de novembro

"Não haverá jogo em Montevidéu". Zico, na quinta-feira, véspera da segunda final da Libertadores, no estádio Nacional. Para evitar a terceira partida, em campo neutro, no Uruguai, o Flamengo jogava pelo empate na casa do Cobreloa. Não exatamente o lar do time de Calama. O estádio havia sido vetado pela Confederação Sul-Americana. Não só por questão de segurança e conforto. Por grana, mesmo.

O Flamengo estava numa fase em que realmente ditava se haveria ou não partidas. Quatro dias antes, o clube conseguira liminar junto ao Conselho Nacional de Desportos (CND) adiando os jogos contra Volta Redonda e Vasco, pelo Estadual. Além da maratona insana, ainda pesava sobre o elenco a pressão institucional de uma final de Libertadores num país sob ditadura. "O clima não era agradável", conta Júnior. "Recebíamos ofensas por onde passávamos em Santiago. Garçons com má vontade no hotel, polícia nos ameaçando na chegada ao estádio Nacional…". Para Zico, "tínhamos a impressão de que estávamos num quartel".

Sob um céu estrelado e com agradáveis 23 graus na noite de sexta-feira, o Flamengo entrou no gramado de Santiago de camisa brancas para enfrentar um alaranjado Cobreloa motivado pelo apoio de vários torcedores de outros clubes chilenos, e reforçado pela entrada do meia uruguaio Washington Olivera na ponta esquerda. Ele substituía Muñoz. Gómez também começava jogando, como meia pela esquerda, dividindo a armação com Merello. O volante Jiménez, implacável marcador da carne de Zico no Rio, recuava para formar a zaga dos pesadelos rivais com Mario Soto, no lugar de Rojas. O 4-3-3 se mantinha. Mas era um time mais ousado, com dois armadores e dois pontas.

O Flamengo repetia o 4-2-3-1 do Maracanã, com Adílio naturalmente mais recuado. O mesmo time que, no domingo anterior, menos de 48 horas depois da vitória na primeira decisão, venceu o Fluminense por 3 a 1. Novamente com Lico pela direita e Tita pela esquerda, com Zico armando por dentro. Pouco mais de 200 rubro-negros apoiavam o clube em Santiago. Tinham a ajuda de torcedores de outros clubes brasileiros. O Flamengo parecia ser "o Brasil na Libertadores" mais que no discurso usual da mídia. Mas não era exatamente o "Rio de Janeiro" na competição. O presidente da Federação estadual, Otávio Pinto Guimarães, havia comunicado o presidente Dunshee de Abranches que haveria o clássico contra o Vasco, domingo, 17 horas, no Maracanã. Para não desgastar e preocupar ainda mais o elenco, a direção do Fla resolveu dar a má notícia ao time apenas depois do jogo de Santiago. Quando esperava fazer a festa do título da Libertadores.

Logo depois da novela global das oito ("Brilhante"), que já então acabava depois das nove, a bola rolou em Santiago. O árbitro uruguaio Ramón Barreto começou o jogo 21h20. A premiação para os atletas era de 600 mil cruzeiros pelo título que poderia vir depois de 90 minutos. Mas que parecia mais distante com o ínicio nervoso. Aos 2, Figueiredo foi recuar uma bola para Raul e mandou pela linha de fundo. Logo depois, solada monstro de Mozer, com os dois pés nas canelas de Puebla, poderia ser advertida pelo uruguaio que pretendia ser mais um juiz de paz que um árbitro de futebol.

O excesso de firula rubro-negro quase deu em gol chileno, aos 7. Um balãozinho de Adílio na entrada da área virou uma das oito grandes chances que teria o Cobreloa na partida. Se havia um time que poderia ser campeão sem precisar dar chutão era o Flamengo. Mas não era preciso exagerar. O Fla perdia a serenidade. Talvez pelo ambiente pouco amigável. Ao fundo, uma intermitente sirene incomodava e parecia lembrar os anos de chumbo, tortura e morte do estádio que, depois do golpe militar de 1973, servira como presídio político.

O Flamengo conseguia tirar o Cobreloa de sua área até o perigoso ponta-direita Puebla escapar às costas de Júnior e mandar à esquerda de Raul. Era preciso o lateral sair menos, e Andrade ajudá-lo mais. Terreno e equilíbrio eram perdidos pelos brasileiros. Mas Soto extrapolava. Num mesmo lance, logo depois, entrou duro em Nunes e deixou o braço no rosto de Adílio. O árbitro deixou seguir a briga de rua. "Soubemos depois que o Soto usou uma pedra ou anel para cortar o Adílio", afirmou Júnior. O chileno sempre negou. Mas difícil dar crédito a ele.

O jogo era mais violento que o do Rio. Enquanto Tabilo levantava Tita para o topo das cordilheiras com uma falta besta, Adílio era tratado pelo médico Célio Cotecchia. Um corte no supercílio direito deixava a camisa do armador vermelha pelo sangue vertido. Mas só Zico levara cartão. E por reclamação…

Adílio voltou a campo aos 22 minutos com a proteção na testa. Na época, um jogador podia atuar sangrando. Só não poderia o árbitro deixar a carnificina seguir. Mozer evitou um gol de Siviero com um carrinho mais preciso que os passes rubro-negros. No mesmo minuto, aos 24, Mario Soto dividiu com Lico e deu um tapa no rosto do meia. Nunes foi para cima dele. O árbitro foi falar com o assistente uruguaio Juan Cardelino. Voltou com um cartão amarelo para Soto e para Nunes. E sobraria mais um para Lico, que não deixou o Cobreloa sair para o jogo com rapidez.

O Flamengo se perdia, também porque quase sempre encontrava dificuldades para jogar nos contra-ataques. Era time de toque e aproximação, não de bolas esticadas. Muito menos de pancadas. Aos 27, Nunes deu uma entrada estúpida em Merello, que voltava para trás o lance. Poderia ser expulso pelo conjunto da obra, ou até recebido o vermelho direto. Tita e Jiménez entraram com os pés nas respectivas gargantas. Júnior seria a vítima logo depois. Se por um lado havia o risco de o Flamengo perder algumas vidas em campo, o jogo era tão batido e espancado que mal apareciam chances de gol.

Zico errava os passes que só ele acertava. Com meia hora de "futebol", Carpegiani tentou mudar e mandou Tita para o lado dele, o direito, e passou Lico para a esquerda. O Flamengo equilibrou o jogo, e afastou os perigos que rondavam a área com notável atuação de Mozer. Mas numa rara falha dele e Figueiredo, aos 37, Puebla só não abriu o placar porque Raul foi Raul. No rebote da grande defesa, Júnior salvou o gol certo, antecipando-se a Siviero.

Ao final do primeiro tempo, aos gritos tradicionais "Chi-chi-chi, le-le-le", o Cobreloa deixou o gramado sob aplausos. Lico e Adílio retornariam do intervalo com três pontos nos supercílios. Vítimas dos objetos cortantes nas mãos de Soto. Cabeça, ossos, veias e pontos nos lugares, o Flamengo voltou mais consciente, tocando a bola com menos velocidade e mais aproximação, administrando melhor a vantagem do empate, segurando mais a bola na frente. Mas, aos 5 minutos, Washington Olivera só não fez 1 a 0 porque Raul salvou gol certo, depois de furada de Leandro.

O Flamengo jogava melhor, esfriava o Cobreloa, esvaziava o pique da torcida, e batia até mais que o rival. Ainda faltava um ataque. Lance que pintou em seguida, quando a arbitragem caseira impediu que Zico, em posição legal, aparecesse na frente de Wirth, depois de passe brilhante de Tita por elevação. O Cobreloa se enervava com a frieza carioca. O Flamengo pegava mais pesado. Andrade fez falta feia aos 21 em Puebla e levou o amarelo. Ramón Barreto fingia que não era com ele. O Cobreloa começava a só fazer chuveirinhos, fazendo o nome de Figueiredo e Mozer.

Uma bolada no braço de Mozer originou uma chuva de garrafas no gramado pedindo o pênalti inexistente. O jogo estava sob controle. Mas Carpegiani resolveu mudar. Aos 22, sacou Nunes, em noite infeliz e isolada, e apostou em Nei Dias, que era a terceira opção para a lateral-direita. Dias antes, Carlos Alberto tivera de operar o joelho direito e, como o lesionado volante Vítor, só poderia torcer pelo Flamengo até o final da temporada.

A troca de um centroavante por um lateral chamou o Cobreloa para o jogo. Carpegiani fixou Andrade na cabeça da área, colocou Leandro como volante pela direita, e prendeu Adílio do outro lado. Zico foi adiantado como atacante, à frente de Tita e Lico, que mais marcavam que apoiavam. O Cobreloa respondeu com Múñoz na ponta esquerda, recuando Washington Olivera para fazer a função do substituído Gómez, pela meia esquerda.

Aos 27, duas chances seguidas chilenas. Raul fez bela defesa em chute de Puebla; logo depois, Nei Dias salvou antes de a bola bater na trave uma cabeçada de Siviero. O Cobreloa voltava ao jogo e ao antijogo. Puebla derrubou Júnior e pisou no joelho dele. Seria para cartão vermelho e boletim de ocorrência. Mas a arbitragem não quis ver. Carpegiani tentou ganhar gás com Baroninho no lugar de Lico, aos 29. Alteração padrão num elenco que não era tão poderoso quanto os 11 titulares. Eram apenas duas mexidas por jogo. Mais não poderia fazer o treinador. Pouco faria o cansado Flamengo até o final.

O clima estava armado e pesado. O supervisor do clube Domingos Bosco foi empurrado por policiais. O preparador físico José Roberto Francalacci foi para cima, houve briga com os maqueiros, e o ambiente ferveu. Enquanto isso, em campo, o Flamengo criava sua primeira chance real. Zico chutou da entrada da área para boa defesa de Wirth. Apenas aos 31 da segunda etapa. Era pouco.

O Cobreloa apostava no bumba-meu-boi. O Flamengo distribuía patadas. Adílio chutou Escobar por trás. O juiz mais uma vez nada fez. A torcida ainda reclamava da falta de cartão quando Washington Olivera cruzou uma bola que bateu no braço de Figueiredo. No grito, o árbitro marcou a falta inexistente. Merello encheu o pé da meia esquerda. A bola resvalou na barreira, Tita ainda tentou desviar de cabeça, e acabou por tirar de vez Raul do lance. Um a zero Cobreloa. Explosão no Nacional. Erupção da ira rubro-negra. Um fotógrafo tentou tirar fotos dos flamenguistas cabisbaixos e foi agredido por alguns deles, dentro da área brasileira. "Ele passou na minha frente e fez uma piada grosseira. Reagi sem pensar e dei-lhe uma banda certeira", conta Júnior. "Foi o suficiente para um policial engatilhar a metralhadora, mirar em minha direção e me fazer tremer dos pés à cabeça". Cartolas, repórteres, fotógrafos e aspones chilenos invadiram o campo na celebração.

O gol aos 32 minutos mudou de vez o jogo. Não os espíritos armados. Todas as divididas saíam faíscas. Aos 37, Merello foi bater um escanteio e pediu para a torcida parar de atirar tudo no gramado. O clima era tão ruim que Ramón Barreto lavou as mãos e o apito enlameado e terminou o jogo com um minuto de desconto. Isso mesmo. Tirou um minuto dos 45 e não quis mais papo aos 44.

Os jogadores mal se cumprimentaram. Se é que havia como se cumprimentar quando, três dias depois, em Montevidéu, teriam mais 90 ou 120 minutos de luta pela frente. Para Tita, que bateu quase tanto quanto apanhou, "foi o jogo mais violento de minha carreira". Nunes estava danado: "Depois que o Mario Soto atingiu o Lico, fiquei louco. Acertei um chute no tornozelo dele para valer. Não sei como ele suportou. Meus dedos ficaram doendo".

João Saldanha minimizava as dores e humores: "Foi um jogo duro. Mas não tão violento assim. O Serrano, em Petrópolis, bate mais que o Cobreloa". Será?

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Sobre o Autor

Mauro Beting é comentarista do Esporte Interativo e da rádio Jovem Pan, blogueiro do UOL, comentarista do videogame PES desde 2010. Escreveu 17 livros, e dirigiu três documentários para cinema e TV. Curador do Museu da Seleção Brasileira, um dos curadores do Museu Pelé. Trabalhou nos jornais Folha da Tarde, Agora S.Paulo e Lance!, nas rádios Gazeta, Trianon e Bandeirantes, nas TVs Gazeta, Sportv, Band, PSN, Cultura, Record, Bandsports, Foxsports, nos portais PSN, Americaonline e Yahoo!, e colaborou nas revistas Placar, Trivela e Fut! Lance. Está na imprensa esportiva há 28 anos por ser torcedor há 52. Torce por um jornalismo sério, mas corneta o jornalista que se leva muito a sério

Sobre o Blog

O blog fala, vê, ouve, conta, canta, comenta, corneta, critica, sorri, chora, come, bebe, sofre, sua e vive o nosso futebol. Quem vive de passado é quem tem história para contar. Ele tem a pretensão de dar reload no que ouvi e li e vi e fazer a tabelinha entre passado e presente para dar um toque no futuro.

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