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Blog do Mauro Beting

O encapuzado do estádio da final da Libertadores de 2019

Mauro Beting

24/10/2019 18h54

A arquibancada que sobrou para lembrar 1973

Foram apenas dois meses em 1973. Desde o golpe militar em 11 de setembro (que não se perca pela data) até novembro.

Foram mais de 40 mil presentes no estádio Nacional de Santiago em dois meses de detenção. Não era jogo da Universidad de Chile. Nem da Seleção que se classificaria para a Copa de 1974 em uma repescagem contra a União Soviética naquele mesmo fim de 1973. Os soviéticos não quiseram vir jogar no palco da decisão da Copa de 1962 por falta de garantias. Mesmo que representantes da Fifa, sabe-se lá como o diabo, tenham dado condições de jogo ao estádio naqueles dias de chumbo, ferro, pau-de-arara e sangue.

Não foi uma retaliação política do governo comunista pelo golpe que levaria à morte do presidente socialista Salvador Allende. Os próprios atletas da URSS temiam que pudessem sofrer nas mãos dos militares chilenos que, por aqueles dois meses de 1973, detiveram mais de 40 mil chilenos como eles. Mas que eram contrários ao golpe e a ascensão ao poder de Augusto Pinochet, da direita radical, mais radical que direita.

Mais de 40 mil chilenos que foram detidos e ficaram esperando interrogatórios nas arquibancadas geladas do estádio em dois meses de reclusão, seleção, terror, tortura e mortes. Para as autoridades autoritárias de então, foram 40 os que morreram nos esqueletos, entranhas e intestinos de cimento frio do estádio Nacional. Para os que jogaram ao lado das vítimas das barbaridades, foram mais de 400 em dois meses, de setembro a novembro de 1973, quando os detidos e/ou torturados e/ou mortos e/ou desaparecidos foram transferidos para Chacabuco, ao Norte do Chile.

Deixando arquibancadas e vestiários livres para o Chile não receber a URSS. Os soviéticos não vieram para o segundo jogo, depois do empate sem gols na partida de ida em Moscou, disputada apenas duas semanas depois do golpe, deposição e morte de Allende, de forte inclinação de esquerda. Em situação patética, o Chile se vestiu, foi a campo para o jogo que não houve, trocou bolas depois do apito inicial, e fez o gol contra ninguém, e se classificou por W.O. e por decreto para a Copa da Alemanha de 1974.

No mesmo gramado onde, nos dois meses anteriores, presos ficavam aguardando o interrogatório a respeito de suas vidas, de suas amizades, de seus trabalhos, de seus amigos, de suas famílias, de seus livros. Não de sua liberdade de escolher presidente, emprego, estudo, amigos, pensamentos.

Não se podia mais nada no Chile. Como não se podia mais nada no Brasil desde 1964. Como não se poderia mais nada na Argentina a partir de 1976.

A fraternidade ABC de 1915  se transformaria em irmandade de ferro e fogo nos anos plúmbeos de 1970.

Nada pior do que acontecia a partir da escotilla 8. Lugar desde 2003 preservado no estádio Nacional para lembrar o que não se pode esquecer. O que as vítimas do pensamento (ou nem mesmo disso) sofreram em dois meses do estádio que virou arena romana. Nas arquibancadas que só tinham espaço para a intolerância. Torcida trocada por detidos que aguardavam julgamentos e jumentices de quem detinha o poder e jamais o pudor.

Militares e civis golpistas que usavam como instrumento de delação e tortura o  assim chamado "Encapuzado" do Nacional. Uma pessoa que seguia pelo gramado repleto de detidos procurando rostos conhecidos. Ou supostamente reconhecíveis e ainda mais supostamente subversivos à nova ordem. Apenas com os olhos abertos por dois buracos naquele manto infame, ele indicava aos militares quais os nomes proscritos. Parecia a própria imagem da morte com sua foice. Naqueles tempos, algo como foice e martelo, ainda que não fosse.

O Encapuzado se apresentou anos depois, dizendo ser militante comunista que fora expurgado por seus camaradas chilenos e promoveu caças às bruxas comedoras de criancinhas. Mas é provável que o delator encapuzado não tenha sido apenas um. Podem ter sido outros. Provável que tenham sido. Todos encobertos pelo manto da impunidade. Pela coberta que encobria o rosto de quem apontava a possível condenação definitiva. Hoje, pelo que acontece nas entidades esportivas, essa malévola entidade poderia aparecer para colocar o dedo-duro nas feridas e nos fétidos.

Tudo isso no  gramado do estádio Nacional de Santiago. Arena da ditadura não é só a brasileira.

Palco onde estive apenas uma vez, cobrindo Chile x Brasil, pelas Eliminatórias de 2000. Entrei como comentarista da PSN, e, por contingência do ofício, fui até os vestiários. Os mesmos onde também eram executadas as torturas. Quando não foram mesmo executados alguns dos 400, ou 40. Mesmo que fossem apenas quatro. Vestiários onde chegaram a empilhar mais de 120 detidos. Alguns que, para escapar do frio daquele iglu de cimento, se empacotavam nas frestas onde os jogadores deixavam suas chuteiras. Como se houvesse cabimento. Como se coubesse aquilo na vida deles.

Não tenho sensibilidades aguçadas, ou mecanismos extrassensoriais. Mas a sensação que tive nos vestiários-porões do Nacional naquela noite de 2000 só tive igual em Dachau, no campo de concentração perto de Munique, na Copa de 2006.

Não sei explicar.

Como não há como explicar deter 40 mil pessoas por "crimes" de pensamento ou ideologia ou mera perseguição.

O Encapuzado do Nacional é a vergonha que nos carrega sul-americanos em tempos de exceção e execuções.

Não importa se à esquerda (como nas queimas de arquivos e almas no stalinismo) ou à direita (como nas porradas de Pinochet), o que se viu em uma praça esportiva não pode mais se ver em nenhum canto.

Que a final de 2019 da Libertadores seja de paz.

Mas sem colocar a pá de cal do que não se pode jamais enterrar, esquecer. E muito menos esconder.

Sobre o Autor

Mauro Beting é comentarista do Esporte Interativo e da rádio Jovem Pan, blogueiro do UOL, comentarista do videogame PES desde 2010. Escreveu 17 livros, e dirigiu três documentários para cinema e TV. Curador do Museu da Seleção Brasileira, um dos curadores do Museu Pelé. Trabalhou nos jornais Folha da Tarde, Agora S.Paulo e Lance!, nas rádios Gazeta, Trianon e Bandeirantes, nas TVs Gazeta, Sportv, Band, PSN, Cultura, Record, Bandsports, Foxsports, nos portais PSN, Americaonline e Yahoo!, e colaborou nas revistas Placar, Trivela e Fut! Lance. Está na imprensa esportiva há 28 anos por ser torcedor há 52. Torce por um jornalismo sério, mas corneta o jornalista que se leva muito a sério

Sobre o Blog

O blog fala, vê, ouve, conta, canta, comenta, corneta, critica, sorri, chora, come, bebe, sofre, sua e vive o nosso futebol. Quem vive de passado é quem tem história para contar. Ele tem a pretensão de dar reload no que ouvi e li e vi e fazer a tabelinha entre passado e presente para dar um toque no futuro.

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