Sarriá, 36
SARRIAZO – ANATOMIA DE UMA DOR
Era dia 5 de julho de 1982, aproximadamente 10 horas da manhã, no Parque Novo Oratório, em Santo André.
A essa altura daquela segunda-feira, algumas coisas ainda seguiam o curso normal da razão, dos sentidos, das coisas que são como devem ser. Acordei tarde, não haveria aula no Felipe Ricci por uma razão muito nobre: o time de futebol o qual orgulhosamente chamávamos de Brasil, entraria em campo para enfrentar uma capengante Itália pelas quarta de final da Copa do Mundo, da Espanha. O time italiano vinha de uma primeira fase triste, com três empates e uma classificação por gols marcados: um!
Já do nosso, outra expectativa não havia. Daquele time de sonhos com Leandro, Júnior, Cerezo, Falcão, Zico, Sócrates, Serginho e Éder, apenas o espetáculo era admitido. Nada menos do que isso serviria para conter nossa sanha bronzeada de encanto
"Toma café, menino" – cobrou-me a mãe, Dona Claudete. Não quis.
Ansioso por outro baile, como tantos outros que me foram oferecidos por aquele time, saí de casa, peguei minha bola olímpica, número 5, amarrei meu Kichute e fui para o campinho da Rua Cremona. Uma espécie de santuário dos meninos de 12 anos como eu. Cheguei por lá e não encontrei ninguém. Apenas um silêncio grande e o vento que varria a poeira daquele campinho. Não me importei.
Comecei a petecar a bola, meio que como uma forma de me comunicar, de ouvir algo, de tentar saber do que viria logo mais na partida que seria realizada ao meio-dia. Me perdi em pensamentos e outros sentimentos. Só me desvencilhei deles com o chamado de meu primo Delei:
"Ei, Marcelo… Vem logo pra casa da Tia Leoni que o jogo vai começar!". Fui
A partir do apito daquele árbitro, o tempo passou a não ter mais nenhuma lógica, a noção dos minutos se foi, todo e qualquer arremedo de sentido se esvaiu por entre sonhos de meninos que se frustram, por entre paixões que não podem ser vividas, por amores que são vilipendiados por uma chicotada de realidade dura e fria como corte. Começava o jogo que, para mim, jamais terá fim:
Era o Brasil x Itália de 1982…
COMEÇO DO SONHO…
14 de junho de 1982. Acordei tarde.
O rádio da minha mãe na cozinha tocava uma música do Roberto, via Rádio América, minha irmã brincava de boneca e eu levantei para tomar meu café. Passando pela sala vi meu pai aflito, fumando um cigarro atrás do outro e discando freneticamente o telefone. A todo instante, folheava o jornal, depois voltava a ligar. Minha mãe dizia que ele estava tentando falar com nossos amigos jornalistas para saber da Argentina, que segunda minha mãe, Dona Claudete, "parece que tão terminando um xarivari de guerra lá…".
Vi na capa do jornal que era a tal das Malvinas que eu tanto ouvia falar.
Eu sabia, mas não sabia de nada. Na minha cabeça de menino de 12 anos, não queria muita coisa com essas guerras. Meu mundo naquele dia 14 não era esse e então peguei minha bola, meu álbum de figurinhas da Copa e corri para casa da minha Tia Leoni, na Avenida das Nações, no Parque Novo Oratório, nosso, de uma Santo André ainda bucólica.
Cheguei e vi Tia Leoni fazendo empanadas e coxinhas de frango. Vi a mesa repleta de garrafas de Coca-Cola de um litro, cervejas Brahma Chopp, maços de Minister longo, ouvi vários sorrisos e muita expectativa. Meus primos terminavam de enfeitar a rua, a prima Marlene tentando ficar alheia àquilo tudo, ouvia um disco do Joy Division e eu de coração acelerado: a Copa do Mundo ia começar! Brasil x URSS se enfrentariam! E por mais que parecessem séculos, as horas passaram e o jogo, enfim começou…
NÃO SEJA ALIENADO, COMPANHEIRO!
Bola rolando. O time não estava bem. Nervosismo, ansiedade, o time mal em campo e aquela discussão interminável entre meu pai e meu tio Urzaiz enchendo nosso saco:
"Muito me admira Urzaiz, você aqui feito uma besta torcendo pra esse time aí. Você sabe o que isso
representa, sabe o que significa. Mesmo assim fica aí se descabelando…".
"Mauro vá à merda você, o Marx, o Trotski e a URSS! Deixa a gente ver o jogo..".
"Alienado!".
"Alienado é a put…".
"EEEEEEEEE SILÊNCIO, OLHA O JOGO!!" – clamávamos, nós os alienados todos, para podermos torcer em paz. Eles pararam, mas a URSS abriu o placar com um chutão de Bal e um frangaço de Valdir Peres. Pânico! Não podia ser…
Depois disso, pouco falei. Observei meu pai falando em complô da direita universal contra o regime comunista quando o árbitro não deu um pênalti para os soviéticos, vi minha Tia Dindinha colocar dentes de alho debaixo da mesa como simpatia, minha mãe bater cabeça para Xangô e toda sorte e reza do mundo para ajudar aquilo mudar.
Não sei se foi isso, mas o Brasil virou com dois chutaços de fora da área, um de Sócrates, outro de Éder. Final, 2×1 de virada, festa, pipoca pro alto, beijos, abraços efusivos, inclusive entre meu Tio Urzaiz e meu pai, que na hora do gol do Éder, esqueceu o Marxismo, a Guerra das Malvinas, a paz mundial e a compostura. Gritou como o mais feliz dos alienados.
Começava a Copa de 1982. Ali eu depositei todas as minhas esperanças e odes. Meu coração de menino vivia aquela Copa como se jamais fosse bater por outra. Talvez não tenha batido…
O BAILE
E a Espanha era uma festa! Em um escaldante verão, as tardes de Sevilha viram os 11 homens de amarelo dar espetáculos contra Escócia e Nova Zelândia e agora vinha a segunda fase. Seriam quatro grupos de três times sendo que o campeão de cada grupo iria para a semi. No grupo do Brasil, que muitos chamaram de "grupo de fogo" tinha além de nós, Argentina e Itália.
A Argentina estava engasgada na garganta por tudo que havia acontecido quatro anos antes, quando uma armação da ditadura argentina, com a direção da seleção peruana, garantiu um resultado para os portenhos passarem de fase. Nunca aceitamos e no dia 02/07/82, em Barcelona, o Brasil jogou futebol como se não houvesse amanhã. Como se fosse o último jogo da face da terra. Foi 3×1 em cima deles e era pra ter sido pelo menos uns oito! Passamos pelos argentinos. Agora era cumprir uma conveniência que seria vencer a Itália, time capengante e irregular e passar pra semi. Não passava pela cabeça de ninguém que o destino fosse ser outro. Bem, a bola rolou…
O APOCALIPSE
No caminho entre o campinho e a casa de minha Tia Leoni, eu e meu primo Delei pouco falamos. Estranhamente algo nos incomodava, não dava para saber. Nem de longe pensávamos que era nosso time, ali tudo ia bem. Mas aquele silêncio do campinho da Rua Cremona, irritantemente insistia em mim. E mesmo chegando no alvoroço da casa minha Tia Leoni, nosso ponto escolhido para torcer, mesmo lá, em meio a tanta euforia, a única coisa que eu conseguia ouvir era aquele silêncio.
Dentro de mim as coisas seguiam assim, meio turvas e caladas. Não brinquei com o Fred, o pastor alemão do quintal, não tentei roubar as empanadas da Tia Leoni, pouco falei e surpreendentemente sentei no meu canto do sofá da sala e alheio a tudo aquilo, esperava pela hora do jogo.
Só ouvia o silêncio…
Eis que aos cinco minutos de jogo, Paolo Rossi faz 1×0 para a Itália. Aquilo me fez ouvir mais outras coisas, além do silêncio. Finalmente ouvi meus tios e primos brigando, xingando o Luizinho que deixou o italiano subir sozinho e por aí vai. Não me assustei, aquilo já havia acontecido antes e viramos contra URSS e Escócia. Decerto que algo aconteceria para restabelecer a ordem. E aconteceu: Sócrates empata aos 12 minutos. Festa!
Os mesmos abraços, a mesma alegria e então do nada, poucos minutos após, aos 25, o mesmo Rossi aproveita um vacilo de Cerezo e faz 2×1 para Itália. Medo…
Aquilo nunca aconteceu. Nunca tínhamos visto uma seleção ousar atacar e marcar tão bem nosso time. Quem diabo era esse tal de Conti que tanto corria? E esse aê, tal de Graziani, que está em todo lugar? E o tal do Rossi?? Nunca jogou nada e vai resolver jogar agora?? As perguntas me torturavam e não tinham resposta. Assim seguiram até os 22 do segundo tempo quando Falcão enfiou o pé e fez o 2×2.
GOOOOOOLLLLLLLLLL!!! – Gritei com gosto. Saiu das profundezas da minha alma de menino a força para comemorar um gol que nos classificaria e que nada: "Vamos virar isso aê" – eu pensava. Mas aí veio os 29 minutos do segundo tempo de jogo, no Sarriá…
Não sei exatamente o que houve depois daquele terceiro gol de Paolo Rossi. Apaguei da minha mente aquilo. Não quero lembrar a dor que senti quando o goleiro Zoff pegou aquela cabeçada do Oscar aos 42 do segundo tempo. Não quero lembrar a hora em que o árbitro apitou o fim. Sei apenas o que houve depois daquilo.
Andei até a cozinha da casa e chorei… Tive uma crise de choro absurda a altos brados. Todo mundo correu, tentou falar comigo, mas nada conseguia me consolar. Me desvencilhei de quem quis me segurar, corri até o quintal caí no chão e segui chorando. Naquele momento na casa da minha tia, só se ouvia meu choro.
Minha mãe preocupada me segurou, chorou comigo. Meu pai, desesperado, não sabia o que fazer. Eu seguia…dentro de mim, pela primeira vez na vida veio uma dor de perda, de me tirarem algo que gostava, algo difícil de sentir. Nesse momento, Tio Urzaiz veio.
Me pegou do chão a contragosto, me jogou no carro. Lembro que ele falou algo com meu pai e então saímos. No banco daquele Opala, ouvi meu tio falando comigo.
Rodamos de carro. O jogo acabou e saímos umas 15h se muito. Meu tio me entregou em casa às 22h30. Em casa pouco falei. Deixei minha mãe me beijar, meu pai, vi minha irmã e fui deitar. Não dormi.
Naquela noite quis que tudo de muito ruim acontecesse com a Itália e com o Paolo Rossi mas não adiantou: semanas depois ele foi artilheiro da Copa e a Itália campeã do mundo.
Muita coisa aconteceu depois disso.
Surgiram técnicos covardes e seus volantões, surgiu a desesperança em campo e a culpa disso tudo, era da beleza segundo alguns. O Brasil ganhou uma Copa nos pênaltis, outra de madrugada na Ásia e eu não comemorei. Não comemorei mais nada de seleção. Minha geração não é dada esses foguetórios.
Não nos cobre que sejamos felizes com uma Copa que se ganha com o adversário dando uma bicuda para fora. Não queiram que vejamos graça em vencer uma Alemanha capengante, numa copa garfada na arbitragem. Não queiram que sejamos complacentes com a seleção do Ricardo Teixeira, com o Brasil do Collor, com o oba-oba do Galvão Bueno. Não…
Nós sempre seremos a geração que ousou sonhar. Que teve a picardia de querer o show, de mandar às favas esse troço de "jogar pelo empate". Dane-se! Não jogamos pelo empate, jogamos pelo sonho! E por mais que doa, como disse meu Tio Urzaiz, sempre vai valer pena. Sempre.
Nós somos a geração que pra sempre vai torcer para aquela cabeçada do Oscar entrar, mesmo sabendo que jamais isso vai acontecer.
SÃO PAULO, AGOSTO DE 2010
Não me recordo que diabo de evento era aquele e nem tampouco me preocupo com isso. Eu ia participar de uma coletiva com Dino Zoff, o goleiro italiano de 1982. Após perguntas, risadas, simpatia e elegância da parte dele, a coisa acabou e eu o segui pelo corredor do hotel. Cheguei perto.
Vi um homem alto, chique, muito bem vestido, um "signori italiano" típico. Ele me viu. Abriu um largo sorriso, me esticou a mão, eu apertei e disse:
"Posso te fazer uma pergunta?"
"Claro…" – respondeu, gentilmente.
"Por que você pegou aquela cabeçada do Oscar, em 1982? Por que?"
Nesse momento, o velho Italiano riu e com a enorme mão direita me fez no rosto um afago de pai, de quem realmente se preocupa e me disse:
"Menino, por que você não esquece isso?"
"Porque eu não consigo. Simplesmente não consigo…"
ESCREVEU MARCELO MENDEZ
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