A maior virada do futebol brasileiro começou em Campo Grande. Mercosul de 2000.
Vinicius Bernardo de Assis tinha oito anos em 20/12/2000. Já tinha sido campeão do Brasil em 1997. Mas ele só tinha cinco, então. Difícil lembrar, mesmo se Edmundo tenha feito aquele Brasileiro inesquecível, com um belo time que Vinicius decorou ao ver todo dia na parede de casa o pôster que o pai (que o ensinou a ser Vasco) tinha dado. Libertadores de 98? "Lembro o gol do Juninho contra o River, da final, e de mais um pôster". Time mudado e melhorado para ser vice mundial em janeiro de 2000. Semifinalista do Brasileiro no final daquele ano e também finalista da Mercosul.
Terceiro jogo da competição sul-americana. Estreia de Joel Santana em plena final. E na casa do adversário. Palmeiras que não tinha mais os timaços dos anos anteriores. Mas era Verdão. No Palestra. Time de melhor campanha da história da Mercosul. Terceira final seguida. Campeão em 1998, vice em 1999. Tinha eliminado o Vasco na Libertadores em que foi campeão um ano antes. Tinha de respeitar. Sem o despeito que Eurico Miranda teve ao demitir Osvaldo de Oliveira depois da primeira semifinal do BR-00, no empate com o Cruzeiro de Felipão, em São Januário.
Papai Joel assumiu na finalíssima. Não teve tempo para nada. A não ser não ver nada do time dele no primeiro tempo no Palestra. Mesmo com menos nome e time que o Vasco, o Palmeiras meteu 3 x 0 em 45 minutos absurdos. Num intervalo de 44 segundos, fez dois gols. Ambos aos 36 minutos! Fez o terceiro aos 45. Mais um minuto, o árbitro encerrou o primeiro tempo. Sob o coro de "bicampeão" de quase todo o Palestra. Grito que não havia vascaíno que duvidasse.
Ou havia?
Fala, Vinicius: "Eu estava sentado em uma cadeira branca de plástico na 'sala' de casa desde oito da noite. Sala, na verdade, era a parte da copa da cozinha, pois a casa ainda estava em obra e a cadeira era nosso sofá. Ainda não tínhamos dinheiro pra comprar um. Mas, com o pouco que tinham, meus pais me deram um uniforme do Vasco. Fiquei feliz da vida. Meu pai saía tarde do trabalho e vinha de muito longe, mas, no dia anterior, me disse que tentaria chegar a tempo para vermos a final. Juntos! Eu esperando, ele e a final. O jogo começou e nada dele chegar. E não só a ausência do meu pai me incomodava, o Palmeiras, também. Fez 1 a 0, 2 a 0, 3 a 0, e eu não entendia o motivo de o Vasco levar tanto gol. Os vizinhos rivais gritavam, soltavam fogos e se alegravam com o momentâneo vice do Vasco. Fim de primeiro tempo, Palmeiras vencendo em seu estádio por 3 a 0, vizinhos comemorando, meu pai ainda não havia chegado… O que eu podia fazer naquela situação pra mudar alguma coisa?"
No vestiário, Joel organizou a defesa e pediu para o time parar de tomar gols. Eurico prometeu os diabos se os jogadores não voltassem ao menos com mais vergonha na alma.
Viola entrou muito bem pela esquerda. Juninho Paulista fez o diabo, sofreu dois pênaltis e ajudaria o Palmeiras a sofrer a mais absurda virada. Sacramentada pelo Romário em noite de Baixinho.
4 a 3 Vasco. O Time da Virada. Da maior virada em finais do continente.
Até hoje quem esteve no vestiário vascaíno e no Palestra não sabe como o Vasco virou. E como virou história. Joel apenas pediu para não tomar mais gols. Eurico prometeu tirar a pele do elenco. Os jogadores "apenas" jogaram o muito que sabiam. "Apenas" marcaram 4 gols em 47 minutos finais depois de sofrerem dois em 44 segundos no primeiro tempo.
Faltavam 8 segundos para acabar o acréscimo. A Mercosul seria decidida nos pênaltis. Mas o silêncio do Palestra já definia um favorito nos tiros penais. Só que a penalidade máxima veio no castigo de Romário. O gol dos 4 a 3.
Isso foi tudo que eu vi na cabine da antiga PSN ao lado do inesquecível Osmar de Oliveira. Tudo que meu pai pé-frio sofreu na nossa transmissão. Ele só ligou a televisão quando soube pelo meu primo que estava 3 a 0 no intervalo. Não havia como o "azarado" do meu pai gelar o nosso time…
Para ele, foi Vasco 4 x 0. Para o Vinicius, em Campo Grande, também. Meu agora parceiro de Esporte Interativo estava em casa, debaixo de seus oito anos.
Depois do gol de Tuta, o terceiro do massacre palmeirense na Mercosul, ele foi ao quarto. Sem falar com ninguém. Só pensando nele mesmo. Ou nem pensando. Apenas iluminado.
Conta, Vinicius: "Provavelmente nada eu poderia fazer da minha cadeira branca vendo pela TV em Campo Grande. Mas, na minha inocência de criança e amor pelo Vasco, fui ao armário, peguei aquele uniforme do Vasco que meus pais haviam me dado e o coloquei. Estava devidamente uniformizado com camisa, calção e meião, pra voltar pro segundo tempo e ser mais um a tentar fazer milagre e virar o jogo em 45 minutos".
Vinicius vestiu o meião branco do Vasco. O calção. Colocou a camisa com que jogava muito bem. "Eu já assistia aos jogos sozinho com 4 anos e, com 5, já queria ser jogador de futebol e atuar pelo meu clube de coração (infelizmente aos 14 anos o joelho interrompeu esse sonho)".
Mas, naquela noite, ele estava vestido de Vasco. Mais: investido de torcedor do Vasco. Dos pés com meiões ao peito enfaixado pelo manto. Da cabeça não tinha nada do Vasco visível. Até por ser invisível a paixão. Indescritível. E, nessa história, inefável.
"Começou o segundo tempo e eu ainda sozinho na cadeira branca de plástico. E então, algo estava acontecendo, o Vasco fez dois gols e diminuiu a diferença pra um golzinho só. Mas aí, Júnior Baiano quis testar minha fé de pequeno torcedor e foi expulso. Como virar com um a menos e na casa do adversário? Eu não fazia ideia, mas nem isso abalou minha confiança. Continuei acreditando do mesmo jeito. Então tivemos o empate. Os vizinhos se calaram e eu passei a acreditar mais na virada do que em ver ainda algum minuto de jogo com meu pai. Quando Juninho Pernambucano bateu no peito e pediu apoio da torcida, eu já estava um louquinho fanático batendo no peito como ele e aumentando um pouquinho só o volume da TV, já que minha mãe estava no quarto dormindo. E então, num lance confuso, de bate e rebate, a bola sobrou pra Romário, que com aquele toquinho sacramentou a maior virada da história do futebol. Eu já não tinha motivos pra me conter, desci da cadeira correndo, subi na janela, segurei nas grades e com os pés apoiados na parede pra não cair, fiquei uns deliciosos 40 segundos gritando para os vizinhos coisas que uma criança de 8 anos não deveria falar. Era um desabafo contra todos que torciam contra o meu time, contra todas as coisas que estavam contra e ainda assim, no fim, deram certo.
Meu pai chegou pouco depois do fim da partida, enquanto eu via a comemoração do título. Disse não acreditar no que estava acontecendo. Quando saiu do trabalho e passou por um bar, viu do ônibus que estava Palmeiras 3 a 0. Já deu o jogo como acabado. Quando desceu do segundo ônibus, já chegando perto de casa, viu Romário marcar o quarto gol na TV de um outro bar e não entendia como aquilo havia acontecido".
Vinicius se vestiu Vasco quando perdia por 3 a 0. Por quê? Nunca soube explicar. Não precisa. É como virar de 0 a 3 para 4 a 3 – e com um homem a menos no Palestra! Ou melhor. Com Vinicius a mais lá em Campo Grande.
"Fui dormir como a criança mais feliz do mundo naquele dia, acreditando que sem mim e meu uniforme, nada daquilo seria possível de acontecer."
Ele não se fardou e não se fartou de vitória. Ele se pintou e se plantou na frente da TV quando o Vasco mais faltava e mais precisou de fé. Ele foi solidário e solitário na esperança. Acreditou sem motivo. Ele vestiu sem cerimônia.
Ele foi o que é. Torcedor. Assim virou o placar. Assim deu a volta olímpica.
Assim, depois de quase 16 anos, agora "entendi" como o Vasco teve força e luz para virar. Não é porque Vinicius é meu amigo e um baita profissional que toca junto meu programa no YouTube do Esporte Interativo. É porque Vinicius é um cara que, como muitos do nosso canal, veste a camisa quando não é "preciso". Está aí para todas as coisas. Está lá para carregar todo os fardos. Fardado. Uniformizado. Vestido. Investido pelos poderes supremos dos deuses da bola que premiam quem sabe que torcer é profissão de fé. É amor incondicional. Na alegria de 1998 e na tristeza de 2008. Na saúde de 1997 e na doença de 2015. Na inacreditável vitória da virada da Mercosul de 2000. Agora mais crível pela paixão de um menino de 8 anos.
Vinicius só viu o tempo dos quatro gols vestido de Vasco. Só se vestiu quando tudo estava perdido por três gols.
Não sei o que será esse BR-17 que promete muito equilíbrio. Mas sei que, se fosse você, eu começaria me vestindo das meias ao peito com o coração cheio de esperança.
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